Nosso último abraço
Por Natália Noronha
Bangladesh, Savar. A rotina de
trabalho de vinte e quatro de abril de 2013 num complexo industrial que
abrigava 5 fábricas de confecção têxtil prometia o canto desencontrado e
confuso das máquinas, a fofoca tímida e baixa das amigas de trabalho e o grito
insatisfeito dos patrões. Aquela mesma rotina. O esperado. Mas o inesperado aconteceu.
O prédio Rana Plaza, de nove andares,
que confeccionava roupas e acessórios para grandes marcas estrangeiras, ruiu no
começo da manhã da quarta-feira 24. O desabamento deixou mais de mil mortos e ultrapassa
2000 em número de feridos.
O que muita gente não para pra pensar
em tragédias como a de Bangladesh é que, mais que números, as mortes significam
vidas, famílias e histórias. E que, mais que a existência de histórias, as
mortes significam a triste não-continuidade delas. Mais de mil planos
interrompidos e empurrados pra debaixo de toneladas de concreto – concreto este
que não lhes ofertava a segurança devida: os proprietários do complexo foram alertados
sobre rachaduras - cuja existência comprometia a estrutura do prédio -
percebidas na terça, dia que antecedeu a tragédia.
Entre as milhares de vítimas, duas em
especial cativaram a atenção de Taslima Akhter. A fotógrafa e ativista
bangalesa fazia a cobertura fotográfica do acontecimento quando se deparou com
a cena. Um par de pessoas supostamente jovem, com uma porção do corpo escondida
sob a matéria de concreto. Um homem e uma mulher cujo laço, se não existente,
existente se tornou naquele instante: abraçam-se, quase que agarram-se as
almas. Ela, com a cabeça violentamente inclinada para trás; ele, como que num
encaixe, reclina a cabeça sobre o peito da moça, com olhos fechados e boca semiaberta.
Ele a envolve em seus braços como se gritasse não querer perde-la.
Foto: Taslima Akhter / Divulgação
Taslima tinha percorrido os escombros
durante o dia inteiro, tinha acompanhado todo o processo de buscas e de
salvamento das vítimas, e às duas da manhã capturou o que foi considerado “o
registro mais assombroso” da tragédia de Bangladesh. A foto passeou pelas redes
sociais, pelos noticiários, sites e blogs e foi certamente o símbolo maior do
desmoronamento.
À Time, revista eletrônica estadunidense,
a fotógrafa fez um breve relato sobre o registro:
“Eu
venho fazendo muitas perguntas a respeito do casal que morreu abraçado após o
colapso. Eu tentei desesperadamente, mas ainda não achei nenhuma pista a
respeito deles. Eu não sei quem são ou qual a relação eles tinham.
Eu passei o dia inteiro do desabamento no
local, assistindo aos trabalhadores serem retirados das ruínas. Eu lembro do
olhar aterrorizado dos familiares - eu estava exausta mental e
fisicamente. Por volta das 2h, encontrei um casal abraçado nos escombros. A
parte inferior dos seus corpos estava enterrada sob o concreto. O sangue que
saía dos olhos do homem corria como se fosse uma lágrima. Quando os vi, não
pude acreditar. Era como se eu os conhecesse - eles pareciam ser muito
próximos a mim. Eu vi quem eles foram em seus últimos momentos, quando, juntos,
tentaram salvar um ao outro – salvar suas vidas amadas.
Cada vez que eu olho para essa foto, me sinto
desconfortável - ela me assombra. É como se eles estivessem me dizendo, nós não
somos um número - não somos apenas trabalho barato e vidas baratas. Nós somos
humanos como você. Nossa vida é preciosa como a sua, e nossos sonhos são
preciosos também.
Eles são testemunhas nessa história cruel. O
número de mortos agora passa de 750 (nesta
quinta-feira, já chega a quase 1000).
Que situação desagradável nós estamos, onde humanos são tratados apenas como
números.
Essa foto me assombra todo o tempo. Se as
pessoas responsáveis não receberem a punição merecida, nós veremos esse tipo de
tragédia de novo. Não haverá consolo para esses sentimentos horríveis.
Cercada de corpos, eu senti uma imensa pressão e dor nas duas
últimas semanas. Como testemunha dessa crueldade, tenho necessidade de
compartilhar essa dor com todos. Por isso eu quero que essa foto seja vista.”
Em força, o registro supera
palavras. Diz mais que elas. A dor do instante parece ser transmitida, ainda que
em uma porção ínfima do que ela é em sua completude, numa corrente invisível
que nos interliga aos seus protagonistas. Quando olho para a foto, participo
daquele abraço. Esse abraço que mistura duas almas, que as une, no momento, em
uma só. É como se o moço não deixasse escapar uma porção sequer da alma da moça
para que morressem em unidade.
A fotografia entra para a
história e serve como voz dos que não puderam soltar a voz diante da
negligência e do descaso das autoridades sobre as más condições de trabalho e de
segurança que têm os empregados de grandes empresas em todo o mundo.
"há braços, de fato.
abraços, por sorte.
há deus, por fé.
adeus, por força."
há deus, por fé.
adeus, por força."
Talita Prates
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