Clique não, me dê um pão!
Por Natália Noronha
Acho que essa foto estampou quase todas as campanhas de
combate à fome que eu já vi. Também deve ter passeado por entre as páginas de
quase todas as minhas apostilas de Geografia do Ensino Fundamental. E vou
arriscar dizendo que, realmente, a fotografia se fez a expressão maior da fome
na África. Perdão: Kevin Carter a fez.
O fotógrafo de origem sul-africana viajou ao Sudão para
testemunhar o que [mais um]a guerra civil tinha deixado (sim, mais uma, porque
o país vive em guerra há décadas). Kevin e mais alguns amigos fotógrafos, que
formavam o Bang Bang Club, aprontaram seus equipamentos e foram à procura dos
melhores cliques para montar uma foto-reportagem. Em uma de suas buscas, Carter
se deparou com o que seria o alto (e o baixo) de sua carreira.
Era uma criancinha. Arrastava-se ao chão, parecia
agonizar. Sua aparência esquelética era tão gritante quanto sua fome. Logo
atrás, um abutre particularmente feio e com cara de vou-te-comer-já-já assistia
discreto à criança se arrastar. E, assistindo ao abutre assistir, estava Kevin.
Observou uns vários minutos para ver se a ave abria as asas (quem sabe a foto
ficaria mais chocante?). Desistiu. Fotografou e foi-se.
A foto ganhou destaque na edição de março de 1993 do The New
York Times e foi a responsável pela ascensão de Carter como fotógrafo. Em 1994,
Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia.
(Pra você ter uma noção do quanto a foto foi prestigiada, o Pulitzer é a maior premiação do
ramo, uma espécie de Oscar da Fotografia. Né coisa fraca não.)
Mas a história não foi tão florida assim, cheia de altos,
prêmios, confetes e “vivas!”. A foto foi também o grande baixo de Kevin. Assim
como você deve ter se perguntado quando conheceu a história do registro, muitos
também se perguntaram por que Kevin Carter não ajudou o garoto. Por que, sei lá,
ele não largou a câmera e o levou a um abrigo? Por que ele se preocupou mais em
localizar o melhor ângulo do que em salvar a criança? Kevin foi deveras
criticado quanto à sua atitude. Criticado o bastante, talvez, para que meses
após ter sido premiado ele se suicidasse. Em junho de 1994, o fotógrafo morreu.
Levou seu carro a um local propositalmente escolhido e deixou que uma mangueira
levasse monóxido de carbono do escapamento ao interior do veículo.
Tanto quanto sobre sua postura, Kevin também foi perguntado sobre o destino da criança. É de se imaginar o que aconteceu minutos
depois do clique. Baseando-se pela aparência do garotinho e pelo olhar
vou-te-comer-já-já do abutre, dá pra arriscar que o fim foi de morte para a
criança. Mas não, ela não morreu. Sobreviveu à ave e à fome e ainda viveu
alguns anos. Segundo seus pais, Kong Nyong morreu há 5 anos, vencido por
uma alta febre. Olha aí o pai do menino:
"Abutre comeu coisa nenhuma, rapá!"
Olhe bem, eu não sei o que o fotógrafo realmente sentiu após fazer o clique. Ninguém sabe. Mas todas as fontes que consultei para estudar o caso afirmaram que Kevin ficou depressivo, arrependido, perdido. Imagino...
Deve ter se sentido tão vazio quanto a barriga da criancinha. O arrependimento
de não ter sido a salvação da criança aliado a seus outros problemas (diz-se
que ele tinha problemas com a família e que era depressivo) foram os motivos
prováveis de sua queda.
Robert Capa, fotógrafo húngaro e testemunha de muitas
guerras, é dono da seguinte frase: “Se sua foto não está boa o suficiente, você não está perto o suficiente”. Ele não estava se referindo, acredito, à distância física apenas. Mas sim ao
quão estreita pode ser a relação entre o fotógrafo e o caso. Kevin se envolveu
tanto com a criancinha, tanto com o abutre, tanto com a criancinha e o abutre
que sua foto ganhou prestígio, aplausos e “vivas!”.
Ok, foi um belo de um clique, meu
senhor. A foto foi boa, Robert Capa. Mas me responda: esse envolvimento todo e
muito é necessário? É conveniente? Tenho de me vestir de profissional apenas,
só porque estou sendo pago pra fazer o que sei fazer? Até onde posso ir,
enquanto fotógrafo ou fotojornalista? Até quantos minutos posso esperar o
abutre abrir as asas? Sexta, no Globo Repórter.
Um longa sobre a carreira dos quatro fotógrafos do Bang Bang Club e sua ida ao Sudão foi lançado em 2010. O filme tem o mesmo nome do grupo e é uma adaptação do livro autobiográfico The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War. Olha aí o trailer.
Acho que essa foto estampou quase todas as campanhas de
combate à fome que eu já vi. Também deve ter passeado por entre as páginas de
quase todas as minhas apostilas de Geografia do Ensino Fundamental. E vou
arriscar dizendo que, realmente, a fotografia se fez a expressão maior da fome
na África. Perdão: Kevin Carter a fez.
O fotógrafo de origem sul-africana viajou ao Sudão para
testemunhar o que [mais um]a guerra civil tinha deixado (sim, mais uma, porque
o país vive em guerra há décadas). Kevin e mais alguns amigos fotógrafos, que
formavam o Bang Bang Club, aprontaram seus equipamentos e foram à procura dos
melhores cliques para montar uma foto-reportagem. Em uma de suas buscas, Carter
se deparou com o que seria o alto (e o baixo) de sua carreira.
Era uma criancinha. Arrastava-se ao chão, parecia
agonizar. Sua aparência esquelética era tão gritante quanto sua fome. Logo
atrás, um abutre particularmente feio e com cara de vou-te-comer-já-já assistia
discreto à criança se arrastar. E, assistindo ao abutre assistir, estava Kevin.
Observou uns vários minutos para ver se a ave abria as asas (quem sabe a foto
ficaria mais chocante?). Desistiu. Fotografou e foi-se.
A foto ganhou destaque na edição de março de 1993 do The New
York Times e foi a responsável pela ascensão de Carter como fotógrafo. Em 1994,
Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia.
(Pra você ter uma noção do quanto a foto foi prestigiada, o Pulitzer é a maior premiação do
ramo, uma espécie de Oscar da Fotografia. Né coisa fraca não.)
Mas a história não foi tão florida assim, cheia de altos,
prêmios, confetes e “vivas!”. A foto foi também o grande baixo de Kevin. Assim
como você deve ter se perguntado quando conheceu a história do registro, muitos
também se perguntaram por que Kevin Carter não ajudou o garoto. Por que, sei lá,
ele não largou a câmera e o levou a um abrigo? Por que ele se preocupou mais em
localizar o melhor ângulo do que em salvar a criança? Kevin foi deveras
criticado quanto à sua atitude. Criticado o bastante, talvez, para que meses
após ter sido premiado ele se suicidasse. Em junho de 1994, o fotógrafo morreu.
Levou seu carro a um local propositalmente escolhido e deixou que uma mangueira
levasse monóxido de carbono do escapamento ao interior do veículo.
Tanto quanto sobre sua postura, Kevin também foi perguntado sobre o destino da criança. É de se imaginar o que aconteceu minutos
depois do clique. Baseando-se pela aparência do garotinho e pelo olhar
vou-te-comer-já-já do abutre, dá pra arriscar que o fim foi de morte para a
criança. Mas não, ela não morreu. Sobreviveu à ave e à fome e ainda viveu
alguns anos. Segundo seus pais, Kong Nyong morreu há 5 anos, vencido por
uma alta febre. Olha aí o pai do menino:
"Abutre comeu coisa nenhuma, rapá!"
Olhe bem, eu não sei o que o fotógrafo realmente sentiu após fazer o clique. Ninguém sabe. Mas todas as fontes que consultei para estudar o caso afirmaram que Kevin ficou depressivo, arrependido, perdido. Imagino...
Deve ter se sentido tão vazio quanto a barriga da criancinha. O arrependimento
de não ter sido a salvação da criança aliado a seus outros problemas (diz-se
que ele tinha problemas com a família e que era depressivo) foram os motivos
prováveis de sua queda.
Robert Capa, fotógrafo húngaro e testemunha de muitas
guerras, é dono da seguinte frase: “Se sua foto não está boa o suficiente, você não está perto o suficiente”. Ele não estava se referindo, acredito, à distância física apenas. Mas sim ao
quão estreita pode ser a relação entre o fotógrafo e o caso. Kevin se envolveu
tanto com a criancinha, tanto com o abutre, tanto com a criancinha e o abutre
que sua foto ganhou prestígio, aplausos e “vivas!”.
Ok, foi um belo de um clique, meu
senhor. A foto foi boa, Robert Capa. Mas me responda: esse envolvimento todo e
muito é necessário? É conveniente? Tenho de me vestir de profissional apenas,
só porque estou sendo pago pra fazer o que sei fazer? Até onde posso ir,
enquanto fotógrafo ou fotojornalista? Até quantos minutos posso esperar o
abutre abrir as asas? Sexta, no Globo Repórter.
Um longa sobre a carreira dos quatro fotógrafos do Bang Bang Club e sua ida ao Sudão foi lançado em 2010. O filme tem o mesmo nome do grupo e é uma adaptação do livro autobiográfico The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War. Olha aí o trailer.
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