No Clica, foca! de hoje tem a segunda das quatro partes da série que estreou sexta passada! A gente combinou com você de dividir o mundo do
fotojornalismo em quatro pólos diferentes: Música, O Inusitado, Guerra e
Esporte. De cada pólo, selecionaremos uma foto e a descobriremos pra vocês. E hoje
é o dia d’O Inusitado. Dia do diferente, do estranho, do que não é de costume.
Olha aí:
Parte II – O Inusitado
Por Natália Noronha
É fim do expediente no trabalho. Você
está faminto. Sentindo-se solitária, a fome decide aliar-se ao trânsito numa
conspiração irritantemente contrária a você. Precisa chegar ao shopping para
almoçar, mas ainda tem de engolir umas várias doses de sinais vermelhos e
buzinas. Haja paciência! Porque a demora é muita, você cansa e descansa no
banco do carro. Põe uma musiquinha e abaixa o vidro para levar um ventinho, tudo
com a tentativa de aliviar a agonia da espera. Passeando com os olhos pelo céu,
você se depara com um negócio estranho.
Peraí...
Aquilo... Pera. Aquilé a viga da construção, omi. Né possívum negócio desse...
Aquilo em cima da viga é gente, é?
Enquanto mira a cena, boquiaberto e com as sobrancelhas enrugadas, pisca rápido e repetidamente, tentando processar o que vê:
É gente em cima da viga sim, caro
proletário. Gente que tá morta de fome que nem tu. Gente que não tem medo de
altura. Gente corajosa. Mas que gente?
Essa gente corajosa e esfomeada é um
grupo de operários imigrantes. Sem qualquer equipamento de segurança aparente, os
funcionários almoçam tranquilamente sobre uma viga no 69º andar de um prédio em
construção. O registro foi feito por Charles C. Ebbets, fotógrafo americano, em
20 de setembro de 1932 - sim, você voltou 80 anos no tempo -, durante a
construção do RCA Building, no centro
de Nova York.
A foto é espantosa talvez pela
inesperada serenidade com que os operários lidam com a situação. São serenos a
ponto de dividir um cigarro, de bater um papo e de trocar sorrisos, sem deixar
escapar qualquer expressão de nervosismo ou medo: seu comportamento e
expressões passam longe do esperado de pessoas a aproximados 259 metros do
chão.
“Ah,
mas é claro que é montagem! Tá na cara, ó!”
Se eu te dissesse que não, você acreditaria?
Desde o lançamento da foto no jornal New York
Herald Tribune, em 2 de outubro do mesmo ano em que foi clicada, as
suspeitas de uma provável montagem foram levantadas, naturalmente apoiadas nas
condições absurdas da cena. Suspeitas muito compreensíveis, inclusive. Até
porque a situação arriscada em que estavam os operários mais parece resultado de
uma bela sabotagem. Ken Johnston, entretanto, diz que não é sabotagem.
O diretor de fotografia histórica da agência Corbis foi
convidado pelo jornal britânico The Telegraph a analisar a imagem em busca de qualquer
indício de montagem. A análise foi feita no local onde a agência guarda o
negativo da imagem, numa base subterrânea na Pensilvânia, onde são conservadas
várias outras fotos históricas. Na análise, Johnston não encontrou nenhuma indicação
de uma possível montagem e classificou o negativo como verdadeiro; ou seja, o
negativo foi o mesmo usado no momento em que a foto foi tirada.
Em outra foto, alguns dos operários da obra chegam a deitar sobre a viga.
Sobre
os protagonistas da cena
Era tempo de crise nos negócios e de
desemprego: o país enfrentava a Grande Depressão de 29. E no desespero de quem
precisa sustentar a família de qualquer maneira, muitos imigrantes aceitavam
qualquer emprego, sem qualquer exigência de segurança – o que é constatado na falta
de equipamento, de cordas de aço ou de cintos.
Dá pra gente se aprofundar mais nessa
história. Eles a gente já sabe quem são. Mas e quem eles foram no momento da
foto, a gente sabe? O sentido mais literal da expressão “ter o mundo aos seus
pés” é reproduzido de forma muito interessante na imagem. Interessante porque
todo o movimento da cidade (e todo o império das indústrias americanas, dos
grandes prédios e grandes empresários), sob onde e quem sempre estiveram os pequenos
operários, agora movimenta-se debaixo dos pés de quem a construiu. Quem sabe subiu às suas cabeças uma
sensação de poder, de tudo-posso - até porque não havia mais ninguém acima
deles.
Sobre
a veracidade da foto
Numa reportagem feita pelo jornal
britânico Independent, o historiador Ken Johnston revelou que a cena foi
propositalmente forjada para um trabalho de divulgação do Complexo Rockfeller Center e descartou a teoria de que
aquele era um momento cotidiano e, portanto, espontâneo. O cenário e os
operários são reais e não houve montagem, mas os protagonistas da fotografia
foram orientados a aparentar tranquilidade: tudo foi um esquema para
divulgar o complexo de edifícios. Ainda
segundo Johnston, o autor da foto é desconhecido e não Charles C. Ebbets como a maioria pensa. A teoria é a de que vários fotógrafos
presenciaram o momento e participaram da produção do clique, o que deixa a
dúvida sobre quem apertou o botão da câmera.
Viu que por trás de cada foto existe uma história? A gente percebe que uma crise econômica pode ser um
fator influenciador do momento do clique, que a espontaneidade de uma cena pode
ser apenas ilusória e que o ganhador dos créditos da imagem pode não ser quem
fez o clique.
(E se sair do trabalho e no caminho até o almoço vir uma cena dessa, você vai estar preparado. Aí depois tira foto e manda pra gente.)
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