sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Clica, foca!



No Clica, foca! de hoje tem a segunda das quatro partes da série que estreou sexta passada! A gente combinou com você de dividir o mundo do fotojornalismo em quatro pólos diferentes: Música, O Inusitado, Guerra e Esporte. De cada pólo, selecionaremos uma foto e a descobriremos pra vocês. E hoje é o dia d’O Inusitado. Dia do diferente, do estranho, do que não é de costume. Olha aí:



Parte II – O Inusitado
Por Natália Noronha

É fim do expediente no trabalho. Você está faminto. Sentindo-se solitária, a fome decide aliar-se ao trânsito numa conspiração irritantemente contrária a você. Precisa chegar ao shopping para almoçar, mas ainda tem de engolir umas várias doses de sinais vermelhos e buzinas. Haja paciência! Porque a demora é muita, você cansa e descansa no banco do carro. Põe uma musiquinha e abaixa o vidro para levar um ventinho, tudo com a tentativa de aliviar a agonia da espera. Passeando com os olhos pelo céu, você se depara com um negócio estranho.

Peraí... Aquilo... Pera. Aquilé a viga da construção, omi. Né possívum negócio desse... Aquilo em cima da viga é gente, é?

Enquanto mira a cena, boquiaberto e com as sobrancelhas enrugadas, pisca rápido e repetidamente, tentando processar o que vê:


  É gente em cima da viga sim, caro proletário. Gente que tá morta de fome que nem tu. Gente que não tem medo de altura. Gente corajosa. Mas que gente?

Essa gente corajosa e esfomeada é um grupo de operários imigrantes. Sem qualquer equipamento de segurança aparente, os funcionários almoçam tranquilamente sobre uma viga no 69º andar de um prédio em construção. O registro foi feito por Charles C. Ebbets, fotógrafo americano, em 20 de setembro de 1932 - sim, você voltou 80 anos no tempo -, durante a construção do RCA Building, no centro de Nova York.

A foto é espantosa talvez pela inesperada serenidade com que os operários lidam com a situação. São serenos a ponto de dividir um cigarro, de bater um papo e de trocar sorrisos, sem deixar escapar qualquer expressão de nervosismo ou medo: seu comportamento e expressões passam longe do esperado de pessoas a aproximados 259 metros do chão.

“Ah, mas é claro que é montagem! Tá na cara, ó!”

Se eu te dissesse que não, você acreditaria? Desde o lançamento da foto no jornal New York Herald Tribune, em 2 de outubro do mesmo ano em que foi clicada, as suspeitas de uma provável montagem foram levantadas, naturalmente apoiadas nas condições absurdas da cena. Suspeitas muito compreensíveis, inclusive. Até porque a situação arriscada em que estavam os operários mais parece resultado de uma bela sabotagem. Ken Johnston, entretanto, diz que não é sabotagem.
O diretor de fotografia histórica da agência Corbis foi convidado pelo jornal britânico The Telegraph a analisar a imagem em busca de qualquer indício de montagem. A análise foi feita no local onde a agência guarda o negativo da imagem, numa base subterrânea na Pensilvânia, onde são conservadas várias outras fotos históricas. Na análise, Johnston não encontrou nenhuma indicação de uma possível montagem e classificou o negativo como verdadeiro; ou seja, o negativo foi o mesmo usado no momento em que a foto foi tirada.

Em outra foto, alguns dos operários da obra chegam a deitar sobre a viga.


Sobre os protagonistas da cena
Era tempo de crise nos negócios e de desemprego: o país enfrentava a Grande Depressão de 29. E no desespero de quem precisa sustentar a família de qualquer maneira, muitos imigrantes aceitavam qualquer emprego, sem qualquer exigência de segurança – o que é constatado na falta de equipamento, de cordas de aço ou de cintos.
Dá pra gente se aprofundar mais nessa história. Eles a gente já sabe quem são. Mas e quem eles foram no momento da foto, a gente sabe? O sentido mais literal da expressão “ter o mundo aos seus pés” é reproduzido de forma muito interessante na imagem. Interessante porque todo o movimento da cidade (e todo o império das indústrias americanas, dos grandes prédios e grandes empresários), sob onde e quem sempre estiveram os pequenos operários, agora movimenta-se debaixo dos pés de quem a construiu. Quem sabe subiu às suas cabeças uma sensação de poder, de tudo-posso - até porque não havia mais ninguém acima deles.

Sobre a veracidade da foto
Numa reportagem feita pelo jornal britânico Independent, o historiador Ken Johnston revelou que a cena foi propositalmente forjada para um trabalho de divulgação do Complexo Rockfeller Center e descartou a teoria de que aquele era um momento cotidiano e, portanto, espontâneo. O cenário e os operários são reais e não houve montagem, mas os protagonistas da fotografia foram orientados a aparentar tranquilidade: tudo foi um esquema para divulgar o complexo de edifícios. Ainda segundo Johnston, o autor da foto é desconhecido e não Charles C. Ebbets como a maioria pensa. A teoria é a de que vários fotógrafos presenciaram o momento e participaram da produção do clique, o que deixa a dúvida sobre quem apertou o botão da câmera.

Viu que por trás de cada foto existe uma história? A gente percebe que uma crise econômica pode ser um fator influenciador do momento do clique, que a espontaneidade de uma cena pode ser apenas ilusória e que o ganhador dos créditos da imagem pode não ser quem fez o clique.

(E se sair do trabalho e no caminho até o almoço vir uma cena dessa, você vai estar preparado. Aí depois tira foto e manda pra gente.)

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