segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O que chamaram de suicídio...


Por Ana Clara Dantas
    Vladimir Herzog nasceu na antiga Iugoslávia e veio para o Brasil ainda criança, seus pais fugiam do Nazismo que assolava a Europa. Vlado, como era chamado por amigos e familiares, se formou em filosofia pela USP e logo ingressou no Jornal O Estado de S. Paulo, de onde saiu em 1964 para estudar cinema e TV na BBC de Londres. Nessa época, ele já demonstrava interesse na questão da TV Educativa e esperava usar no Brasil os conhecimentos adquiridos na capital inglesa.
   Na volta a São Paulo, torna-se editor de cultura da Revista Visão e algum tempo depois surge a oportunidade de secretariar o telejornal “Hora da notícia” na TV Cultura. Vlado integrava a equipe do então diretor de Telejornalismo Fernando Pacheco Jordão, que tinha o notório interesse de fazer a sociedade retomar a discussão dos seus problemas. O noticiário exibia reportagens sobre questões sociais como transportes, educação e saúde. O “Hora da Noticia” durou quase dois anos. Vitima de denuncias e ameaças, foi extinto em 1974, quando toda a equipe de Fernando P. Jordão foi demitida.
   Em 1975, Vladimir é convidado pelo então secretário de Cultura de São Paulo para dirigir o Jornalismo da TV Cultura com o objetivo de resgatar a credibilidade da emissora.


   Vlado tinha um projeto grandioso, ele planejava fazer da TV Cultura um Canal aberto ao diálogo para que a população discutisse seus problemas. Todas essas ideias são encontradas no plano de trabalho intitulado “Considerações Gerais Sobre a TV Cultura”, escrito pelo jornalista. Nesse documento ele analisa os principais erros da emissora – como a indefinição de objetivos e do próprio publico a que se destina - e traça metas consistentes a serem atingidas.
   A proposta inovadora e o envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro fizeram com que Vlado fosse acusado de subversão. O colunista do jornal Shopping News, Claudio Marques, usava seu espaço semanal para delatar jornalistas. E o grupo da TV Cultura era um alvo constante. Na verdade, Vladimir já esperava ser preso, pois alguns de seus colegas de trabalho estavam detidos no DOI-CODI do II Exercito de São Paulo desde o inicio de outubro.
   Ele imaginava que prestaria depoimento e seria liberado em seguida, pois além de ser absolutamente contra a luta armada, sua participação no PCB se resumia principalmente a discutir os danos que a censura causava na produção cultural. Vlado nunca teve uma ligação forte com a política, seus interesses sempre estiveram voltados para a arte, tendo trabalhado com cinema durante muito tempo. O problema foi o partido, pois o PCB havia se tornado uma importante frente de oposição ao governo, e participar das reuniões dele já era suficiente para ser taxado de subversivo.
   Os jornalistas Rodolfo Konder e George Duque Estrada, a mando dos agentes do DOI-CODI, pediram que Vlado confirmasse as informações que os investigadores queriam escutar. Ele disse que não sabia de nada. Rodolfo Konder estava a poucos metros da sala onde Vlado foi torturado e pôde ouvir os gritos do amigo. Em certo momento, foi ligado um rádio e os gritos de dor e de medo se confundiam com a noticia de que o ditador espanhol Francisco Franco havia recebido a extrema-unção. Depois de algum tempo houve silêncio. Vladimir Herzog estava morto. Para esconder o crime, forjaram uma cena grotesca de suicídio, alegando que Vlado teria utilizado o cinto do macacão para cometer o ato. A versão oficial dada pelo II Exército para a morte de Herzog foi amplamente rejeitada pela sociedade. O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo organizou um ato religioso ecumênico em homenagem a Vladimir.
   A cerimônia aconteceu na Catedral da Sé, no dia 31 de outubro. Havia um clima de tensão e insegurança. Grupos radicais de extrema direita não aceitavam a proposta de abertura política do general Geisel. A morte de Vlado soava como uma tentativa de desestabilizar o governo.  Qualquer manifestação reforçaria a ideia dos radicais de que o país estava tomado por comunistas, por isso foi montada uma operação policial para impedir que o público chegasse a Catedral. Mesmo assim, cerca de duas mil pessoas compareceram ao culto ecumênico que teve a participação do Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, do pastor protestante James Wright e do rabino Henry Sobel.
Multidão em frente a Catedral no culto ecumênico
   Geisel alertou o comandante do segundo exercito, general Ednardo D’Ávila, para que não ocorressem outras mortes naquela situação. Dois meses depois, também vítima de torturas morre o operário Manoel Fiel Filho. Ednardo é afastado do cargo. Os movimentos sociais de oposição ao governo voltam a se organizar e a luta pela abertura política cresce consideravelmente em todo o país.
   Em 1978, quando surgiam as primeiras comissões brasileiras pela Anistia, o Juiz Marcio Jose de Moraes, da Justiça Federal de São Paulo, declarou a União responsável pela prisão e morte de Vladimir Herzog, além de considerar inútil o laudo que sustentava a versão oficial de suicídio. Mas apenas em 1996 a família conseguiu receber uma indenização.
   Recentemente, a comissão Interamericana de Direitos Humanos intimou o Estado Brasileiro a prestar contas sobre a morte do jornalista. Em resposta, o governo alegou que a Lei de Anistia impede a abertura de uma nova Investigação.
   Na última segunda-feira (24 de setembro), o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou a retificação do atestado de óbito de Vladimir Herzog. O novo documento deverá constar que a morte ocorreu em decorrência de lesões e maus tratos, não por asfixia mecânica. A revisão do atestado de óbito foi solicitada pela Comissão Nacional da Verdade, órgão que investiga casos de violação dos Direitos Humanos ocorridos durante o regime militar.
   Nas palavras de um dos seus grandes amigos Zuenir Ventura, Vlado soube viver, trabalhar e morrer com dignidade. Ele acreditava que o jornalismo deveria servir a coletividade, daí a sua frase mais famosa: “Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos ante atrocidades sofridas por outros perdemos também a capacidade de nos considerarmos seres humanos civilizados”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário